Foto: Wladimir Togumi |
Foram 200 km em terra de ninguém, sem um pé de gente no caminho, só casa abandonada, chiqueiro sem porco e, vez ou outra, um bode pulava de um lado pro outro lado da trilha. Muito espinho, mato, cansanção, mandacaru e um sol de esquentar a pessoa de dentro pra fora, de lascar a pessoa ao meio. Sorte que na bike apareceu um vilarejo, do nada, até pão com ovo nós comemos.
Então, vou começar essa história do começo, contar como foi a nossa versão da Final do Brasileiro, a partir dos pensamentos da minha cabeça... 😁
Viramos uma equipe elegível (chique esse nome!😏) por estarmos entre as 3 melhores da Bahia. Quase sempre a gente consegue esse feito mas, nem sempre a gente consegue marcar presença. Entretanto, uma final na Bahia organizada por Arnaldo (da BAR) e por Waltinho e Daniel (do Desafio dos Sertões) tornou o evento imperdível.
No quarteto, eu, Vitor, João e Lucas. Pra completar a galera, Janaína e Camila montaram uma dupla pra correr a prova curta e também foram.
Teve Buzu da FBCA, oferecido pela SUDESB, que saiu na madrugada de quinta pra sexta, chegando em Glória depois do almoço. Uma viagem bem cansativa pra quem vai passar duas noites no mato, sem dormir. Tão demorada que todos que estavam no Buzu resolveram descer em Glória, ao invés de ficar no alojamento da Polícia em Paulo Afonso. Mas todo mundo sabe que de carro fica mais cansativo ainda, a não ser que você tenha bastante tempo pra dormir, antes de voltar pra casa, ou então, tenha um motorista.
Glória é um município baiano localizado a 514 Km da capital
Salvador, do ladinho de Paulo Afonso, banhado pelas águas do Rio São Francisco,
que faz fronteira com os estados de Pernambuco e Alagoas. Então, do nosso local
de largada, olhando pro Rio São Francisco, do outro lado do Rio pra direita é
Alagoas, pra esquerda é Pernambuco.
A entrega dos mapas foi pouco menos de uma hora antes da
largada, às 22h. Corremos até os barcos, colocamos no Rio e seguimos para 23 km de canoagem, para o lado esquerdo, noite adentro. Eu remando com
João e Vitor com Lucas, saímos em busca de 3 Pontos de Controle (PCs), sendo dois em
ilhas e um numa ruína de Escola submersa no meio do Rio.
Quando as luzes da cidade foram desaparecendo, à medida que a gente ia remando em direção aos PCs, o "breu" tomou conta da situação. Só dava pra ver uma ou outra luz de barcos e alguns pontos de luz à frente. O Rio se remexia, puxava a gente pro lado, vez ou outra nossos remos se batiam no ar.
Pra mim, o primeiro PC é sempre o mais chatinho. Na
canoagem, então, que é coisa! Até você se entender com
distância/tempo/deslocamento. Até saber quem é ilha e quem é continente... Tanto que, vários barcos pararam numa enseada e nós, mesmo
percebendo que o tempo não tinha sido suficiente pra chegar até o PC, paramos
também. Paciência... De vez em quando somos “Maria vai com as outras”.
Sempre digo que navegar na canoagem, no escuro, é igual a quando a gente tem medo e não se aproxima do perigo, pra perceber que o perigo não é tão perigoso. Quando a gente começa, que não enxerga nada, faz um azimute na direção de uma luz ou outra referência. À medida que vai se aproximando do objetivo, a paisagem vai se modificando e o mundo vai aparecendo. É preciso atenção, paciência e azimute. Quando a organização não concede muito tempo de planejamento do mapa, acabo priorizando a canoagem, porque realmente faz diferença!
Foto: Wladimir Togumi
Os PCs 1 e 2 chegaram relativamente rápido. O 3 foi mais demorado por causa da distância. Como tudo no Velho Chico é gigante, a ilha à rodear era um monstro. E ainda escolhemos fazer a volta pela direita, até encontrarmos o PC/Escola abandonada. De lá foi só remar até ficar de braços moles em direção ao ponto de transição, no pequeno trecho de 0,5 km de trekking até o ginásio onde estavam as bikes. Todo final de trecho longo de canoagem parece que nunca vai acabar. Faltar um quilômetro parece faltar cinco, mas sempre acaba.
Em terra, as pernas não queriam obedecer, o frio pegou de jeito. Eu bem sei que essa sensação é passageira. A gente não sabe se fica se remexendo, se come, se aperta os braços, se segura a mandíbula pra não quebrar os dentes. Ao final, o certo mesmo é adiantar o lado, resolver o que tiver que resolver, se recompor e seguir na tremedeira. 😅
Do ginásio, partimos pra 27 km de um mountain bike leve, tranquilo, sem ladeiras, assim como tudo de bike que veio em seguida, exceto pelo sol inclemente.
O dia amanheceu lá pelo segundo PC da bike. Encontramos
todos sem dificuldade, até chegarmos ao PC 9, na transição pro trekking. O sol, confirmando todas as expectativas, chegou chegando, esquentando a pessoa de dentro pra fora. Por
isso, fizemos de tudo pra começar os 20 km de trekking o mais cedo
possível.
Na transição, quase todas as equipes já tinham passado. Reabastecemos na intenção de passar umas 6 horas sem ver gente, partindo na sequência dos PCs de A até o J. E tome-lhe subir ladeira, descer ribanceira, achar caminho de bode, fazer azimute, perder trilha, achar trilha, se acabar em pedras e galhos, espinhos e cansanção. No mapa parecia lindo, na vida real, foi insano, e muito pior do que você está pensando! De lindo mesmo, só a paisagem espetacular de cima do morro.
De todos os PCs, o pior foi o D. Aliás, foi sair do D para o E. De tão íngreme, tivemos que descer escorregando e rasgando mato ao mesmo tempo. Em vários momentos, as pedras rolavam morro abaixo, impedindo que descêssemos muito próximos. Por fim, encontramos a trilha perpendicular e o tal do chiqueiro, num azimute quase perfeito.
Naquele calor horrível, rolou um momento de baixa. Então, procuramos uma árvore pra descansar, pouco antes de finalizar os PCs do trekking. O mais difícil foi encontrar a árvore, porque as árvores do
Sertão não colaboram em nada com a vida do ser humano. Não há folha suficiente
pra oferecer sombra pra todo mundo. Malmente cabe um numa sombra. O sol fica à espreita, passando por um
buraquinho aberto pra queimar a pessoa.
Vitor deitou perto do tronco com o pé em cima de um monte de bosta, João começou a roncar em dois segundos a 50 cm de distância e Lucas também não contou conversa. Eu fiquei ali, com meu problema de hiperatividade, contemplando a paisagem, olhando o mapa, admirando a capacidade deles de apagar sem medo de serem felizes. Tanto que os quinze minutos deles pareceram horas, segundo seus próprios relatos. Os meus pareceram uma eternidade. 😅
Recuperados, passamos num bar pra tomar Coca-Cola, onde foram chegando equipes de vários lugares. Umas começando, outras terminando, outras na metade. E também encontramos as meninas, Jana e Camila, enquanto voltávamos pra transição, que estavam fazendo um trecho de bike numa alegria contagiante. Ainda bem, porque em nossa humilde opinião 😊, aquele remo de 10 km, que fizeram tinha tudo pra dar merda, mas as criaturas tiraram de letra! Imagina você, remar 10 km, tendo treinado 800 m, sem sequer conseguir colocar o barco em linha reta? Tudo doida!!!
Finalizado nosso trekking, para encarar os 80 km de bike,
optamos por uma pequena pausa, tendo em vista que o calor estava quase insuportável. O sol, inclemente, informava que quem
não administrasse o prejuízo ficaria pelo caminho. Não estava fácil pra
ninguém! Chegaria ao fim quem resistisse bravamente.
Começamos a pedalar lá pelas 16h do sábado. João fez as vezes de capitão, dividindo nosso pedal em quatro partes, sendo que, a cada 20 km recebíamos um “Parabéns equipe, concluímos 20 km de bike com sucesso!”. Não sentimos o tempo passar também porque a bike foi muito fluida. Eu, que estava só treinando pra trail, me senti muito ciclista! Luqueta até me rebocou um pouquinho só pra dar um gás, mas eu fui muito sensacional! 😁
Mesmo sabendo da possibilidade de pegar corte, optamos por parar num vilarejo e comer um pão com ovo e queijo. Meu Deus, pensei que fosse o céu! Os meninos deixaram que eu pedisse um suco com a sobra do dinheiro. Foi o suficiente e necessário pra gente chegar na transição com disposição total.
Na transição, por causa do corte no trecho, fomos direcionados pros 10 km trekking pra encontrar os PCs 24 e 25.
Que PC 24 foi aquele, senhoras e senhores? 😂😂
Quando você pensa que um PC no leito do rio vai ser de boa, a realidade lhe força a resignificar o conceito de PC no leito do rio. Muitas pedras puladas depois, fomos impedidos por uma pedra gigante, não vendo possibilidade de passar. Voltamos, subimos pra parte de cima do rio e decidimos fazer um azimute da quina de uma trilha até chegar ao PC. Parece até que foi fácil mas a gente se dividiu, saiu varrendo o caminho, até juntar de novo, descer uma ribanceira retada, entrar no leito o rio e tirar uma bela foto do PC. O detalhe é que depois soubemos que havia passagem pelo lado da pedra.
Finalmente, voltamos pra transição, pegamos as bicicletas e seguimos pros 23 km até a chegada, encontrando dois PCs pelo caminho. No PC 27, minha cabeça já estava dando voltas. Nessa terceira noite sem dormir (contando com a da viagem) já tinha ouvido as mulheres rindo, o barulho de festa e as pedras virando bichos em movimento. Alucinando legal! Daí, entramos no lugar errado, mas eu reconhecia tudo no mapa, como se estivesse certo. Tinha certeza "absoluta", mas vivo aprendendo a jogar a tolha, a pedir ajuda. E foi nesse momento que João entrou na jogada, com a cabeça limpa, sem mapas, sem cobranças, fazendo as suas considerações. Vitor, que já estava navegando, assinou minha demissão, assumindo o comando da nova dupla de navegadores. Virei atleta de percurso. 😁
O dia amanheceu com a gente indo pro PC 28.
De Paulo Afonso até Glória foi tudo em asfalto, engolindo mosquito pelo caminho. Como todo mundo estava meio mole do soninho da manhã, resolvi dar uma apimentada na jogada, dizendo que tinha visto uma equipe atrás de nós. Foi assim que começamos a voar até Glória, com uma adrenalina a mais.
Nossa chegada aconteceu às 5:30 da manhã do domingo, depois de 31 horas de prova. Depois da apuração, conseguimos conquistar o quarto lugar na Final do Brasileiro, sendo a equipe baiana melhor colocada na competição.
Mais importante do que estar entre os melhores, é saber o quanto somos
resistentes e resilientes. O quanto conhecemos nossas sensações e as dos nossos
parceiros. É saber o quanto aprendemos durante esses mais de 20 anos de
estrada, mantendo o espírito "Aventureiros do Agreste", que a gente
não sabe explicar o que é, mas reconhece quem tem.
Eu sou grata aos parceiros de temporada, Gabi, Lucas, Maurício, Arnaldo, João e Vitor, que estiveram no quarteto em várias composições, escrevendo mais um capítulo da nossa história. Em especial, a Vitor, João e Lucas, por essa Final épica! Falar de cada um, é falar de todos juntos! Corremos em total sintonia, cada um com seu jeito, somando habilidades e competências, sempre prevalecendo a união, o companheirismo e o espírito de equipe nas tomadas de decisões.
Parafraseando a minha amiga Janaína: “Juntos, somos
incríveis!”
À propósito, parabéns, meninas! Vocês foram
sensacionais!
Arnaldinho, Waltinho, Daniel e um Staff todinho de gente
boa, essa junção BAR e DS, não poderia ser melhor! Nós ganhamos uma grande
festa, com direito a bode assado e tudo que temos direito! Deram show!
Somos Aventureiros do Agreste, uma equipe que começou na Corrida de Aventura desde a primeira prova na Bahia, e segue competindo até hoje. Nossa história se confunde com a história do esporte, do qual temos muito orgulho de ter contribuído com o seu crescimento em nosso estado.
"Retroceder Nunca, Render-se Jamais e Divertir-se Sempre!" é o nosso lema.
Até 2025, minha gente!
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