Frase que vale pra tudo na vida! Precisamos dividir nossas
culpas.
Tudo certo na Bahia! Um ano de casados no Desafio dos Sertões, comemorando no Desafio dos
Sertões. Cachorro e crianças guardados em segurança e tudo fluindo
tranquilamente, exceto o trânsito em Feira de Santana, é claro. Ninguém entra
ou sai de maneira que dure menos de 40 minutos pra atravessar a cidade. Sem
contar com a destreza dos motoristas a jogar seus veículos de lá pra cá, como se
fossem de papel e não houvesse amanhã.
Chegamos umas dez horas no alojamento da polícia de
Juazeiro, nossa dormida antes da prova. Comemos uma pizza deliciosa no Armazém
Café, onde não tem café em lugar nenhum, mas a pizza vale muito a pena. Meninos
pra um lado, meninas pra o outro e muriçocas pra todo lado. Enrolada na
coberta, virei um charuto como nos meus velhos tempos de Catu, onde as
muriçocas só faltavam nos carregar. Com a diferença de ter um ar condicionado
massa pra facilitar as coisas no quartel.
As meninas simpáticas e educadas, fizeram pouco barulho
quando chegaram. Os meninos que ficaram com Vitor eram bem animados e pareciam
adolescentes, também educados, mas adolescentes. Dormiram tarde e acordaram
cedo. Então, lá pelas 6 da matina, meu chicletinho já rondava as proximidades
do alojamento das meninas, pedindo pra eu sair.
Depois de um café bem gostoso na padaria da esquina,
seguimos pro briefing no Vaporzinho. De lá fomos comer churrasco de bode às 10
da manhã. Em Juazeiro você pode comer carne de bode a qualquer hora do dia ou
da noite...
Com uma só caneta, o mapa de Vitor ficou do jeito que deu,
sem muito tracejado.
Foto de Arsênio Marcos |
Povoado de Junco, 13h. A largada de bicicleta levantou poeira pra todo lado. Nossas
roupas e mochilas coloriram aquela vegetação cor de barro do sertão. Por ali só
tem verde quando se está bem pertinho do Velho Chico ou em locais irrigados. A
segunda opção de cor de vegetação é a cor de barro mesmo.
Foto de Arsênio Marcos |
Aquela primeira parte da prova, até o PC 1, lembrou os canaviais de
Alagoas. Ainda bem que não nos perdemos como nos canaviais de Alagoas. Num
instante alcançamos o PC e seguimos por trilha plana, mas não menos cruel. Trilha
plana é uma beleza! Se não pedalar, para. Muita pedra, espinho, toco, poeira,
areia. Em alguns momentos parecia que passava sobre pisos quebrados.
Apesar de termos entrado uma trilha antes, não demoramos de
alcançar o PC2, saindo do outro lado da pista pra encontrar o PC pelo lado contrário. Voltar seria pior.
Seis quilômetros até o PC 3, mais um pouco até o PC 4. De cara
toda vermelha, sentia calafrios. O sol inclemente do início da tarde,
queimava tudo, ardia a boca, acabava comigo. Vitor perguntava se estava tudo
bem, optei por dizer que estava.
Na estrada, até o cachorro levantava poeira em sua
caminhada. Chegamos ao PC 5 ainda de dia. Aproveitamos pra molhar a cabeça e
recuperar as forças. O trekking daria uma trégua pra o bumbum, que muito sofreu com
tanta trepidação.
Naquela trilha errada, nunca chegaríamos à cachoeira.
Começou a fechar, ficar espinhenta, esquisita. Recomeçamos. E,
antes mesmo de chegar ao ponto inicial, a trilha, bem ali, onde deveria estar.
Ufa! Azimute certo, tudo nos conformes. Descemos pelos pedregulhos afora,
seguindo para o rapel. Dava uns 7 km até lá. Acabamos dando umas puladas de
cerca numa tentativa frustrada de seguir pelo curso do rio. Deu pra lavar a cabeça mas seguimos mesmo foi a
estradinha que estava bem ali à nossa frente. Então caímos no estradão, depois
descemos pra cachoeira já no escuro da noite, com o céu recheado de estrelas.
Pena que o rapel foi cancelado por questões de segurança.
Então Waltinho nos deixou de castigo no PC 6, pagando tempo. Vitor deitou pra
descansar enquanto eu comia um salaminho e a galera do PC saboreava um
churrasco com um cheiro delicioso. Em Juazeiro tem bode assado nos PCs. Também
tem melância, Gatorade e água mineral. Mas o bode não era pra nós não, viu?
No caminho de volta, um atleta perguntou se éramos casados.
Desejava que sua esposa viesse com ele... Ainda não conseguiu mas, quem sabe um
dia ela não viria? Esqueci de dizer que, no nosso caso, ele quem veio.
As bicicletas! Apesar da dor nos ossinhos do bumbum, esse
trecho de bike foi muito bom! A noite fresquinha toda estrelada mandou todo desconforto,
outrora sentido, embora. Meu desempenho melhorou muito! E, com nossa iluminação, as coisas ficaram bem mais tranquilas. Ano passado, embora tenhamos
tido resultado melhor, a iluminação precária nos deixou em maus bocados. Agora
parecia dia!
O corte no PC 8 era 1h da manhã. Chegamos mais de três
horas antes, felizes com nosso desempenho. Era a transição para a parte mais
pesada da prova. O trekking da serra! Em torno de 15km, boa parte dele sobre um
platô voltado pra um precipício. Subimos muito bem, sem nenhuma intercorrência! Quando alcançamos a área do PC virtual A, o do objeto especial,
tirei foto da torre, toda segura de mim. Encontramos duas bases de sustentação
da torre, sem placa. Tiramos fotos por ali e fomos embora...
Ali mesmo, marido deu sua primeira vomitada. Foi quando comecei a perder meu
co-navegador. O trekking lindo, o vento uivava, a vila brilhava lá embaixo, o
precipício sempre do nosso lado esquerdo. Não perdemos o ritmo mas... Meu
marido só pensava em beber uma coca-cola. Saiu da prova naquele momento. Agora me pergunte o que fiz pra trazê-lo de volta?...
Um quilometro depois, lá estávamos nós na clareira do PCV F.
Dá pra acreditar que olhamos em volta, não vimos placa e acreditamos que
tínhamos que tirar foto do lugar e ir embora? Pois é! Tiramos foto de
mandacarus e pedras. Só Jesus Cristo na causa com tamanha arrogância da minha
parte. Dei um nome pra essa atitude: Arrogância de Nevegador. É quando a gente
se acha tão bom que pensa que o organizador que fez besteira. Não foi Vitor, fui eu.
Cheia de argumentos e fotos de pedras e mandacarus, descemos
a serra. Perdi as contas de quantas vezes torci o pé, escorreguei nas pedras,
levei furada de espinhos... Andei quilômetros com um espinho enorme preso no
tênis, sem entender o que estava acontecendo. Por ali, era melhor cair do que
apoiar as mãos em árvore de mandacaru. Em algum momento, Vitor chegou a dizer
que a trilha tinha acabado por medo de altura. O precipício ficava bem do
ladinho. Também perdi a conta de quantos sequelados encontramos pelo caminho. O
povo passava mal a três por quatro.
O final da descida foi bem íngreme até o PC 9. Então formou-se uma fila pra mostrar as fotos dos PCs
Virtuais. Oh, meu Deus! Quando vi as fotos na câmera de Gilson, quase caí pra
trás. Até hoje me pergunto que merda eu fui fazer lá em cima. Tomar fresca?
Enquanto Vitor tentava se recuperar da caruara, eu tentava me recuperar da
idiotice. Xinguei até a minha alma. Só parei quando ouvi uma equipe contar que
gastou mais de quatro horas pra fazer o percurso do PC 8 até o 9 por baixo.
Acordei dos meus devaneios mais íntimos pra fazer as contas... Eram 3:50h, o PC
8 seria agora o nosso 10, então tínhamos pouco mais de 3 horas pra chegar lá,
já que o corte era às 7 da manhã. Fiz tanta merda que queria me redimir não
pegando o último corte da prova.
- Vitor, vamos embora pra não pegar o corte!
Resposta:
- Amor, eu não consigo correr 10km sem parar, imagine 20!?
Acho que não vai dar.
Fomos embora. Tentamos a trilha pelo rio seco, junto com
nossos amigos Arnaldo e Davi. Voltamos pra não perder tempo porque a trilha fechava.
Corremos, caminhamos bem rápido, muito mesmo! Encontramos uma trilha bem
aberta, um corte de caminho que eu pensei que fosse maior mas, ainda assim,
valeu a pena. O dia amanheceu, chegamos na estrada principal. Revezando
trekking forte com trote, Vitor, pensando na Coca-Cola, segurava na minha
mochila pra andar mais rápido. Na corrida, ele conseguia acompanhar direitinho,
no trekking não. Ultrapassamos várias equipes nesse ritmo, chegando ao PC10
vinte minutos antes do corte em oitavo lugar no geral. Sim! Acho que foi
isso... E comemoramos o feito como se não houvesse amanhã.
Problema foi que marido deu uma caruara ainda maior do que a
anterior. Teve calafrios, precisou tirar a roupa pra ficar no sol, não
conseguia comer nada... Eu consolava dizendo que, dali em diante, a situação
era confortável, o tempo era nosso amigo. Passamos do corte, a Coca-Cola
ia aparecer, rs! Podíamos ir em nosso ritmo, pegar os PCs de bike e seguir pra
o remo. Os PCs da serra seriam esquecidos porque não pegamos o corte. Poucos
não pegaram o corte.
Vitor melhorou um pouco, conseguiu trocar meu pneu furado,
enquanto eu arrumava uma caneta pra marcar tudo no mapa dele, já que achava que
tinha perdido o meu. Parece que a noite perdida e os PCs perdidos me deixaram
mais doida. Encontrei a porra do mapa dentro da minha mochila muitos PCs depois.
- Vamos, então? PC 11.
Beleza! Trilha certinha, entra aqui, sai ali, segue
rastro, azimute certo. Nada de PC 11. Vitor passava mal, enjoava, reclamava, queria Coca-Cola.
Deixei-o embaixo de um arbusto seco, voltei sozinha ao ponto de partida, refiz
o percurso. Tinha uma casa... Nada de PC. Fiz azimute, localizei morro,
orientei mapa. Nada de PC. Outra equipe perdida, nada de PC. Convidei Vitor a
me acompanhar pra recomeçarmos ou tentarmos outro caminho. Cansado, sugeriu que
fôssemos pra o 12.
No caminho pro 12, encontramos o caminhão da organização com
as pessoas dos PCs 11 e 12 dentro do carro. O motorista disse que já estava
indo recolher o 13, que fôssemos direto pra o 14.
Enquanto conversava com o rapaz, Vitor estava pongado no
fundo do caminhão pegando toda água que podia carregar.
Eram 10 da manhã do domingo quando seguimos para o PC 14
debaixo do sol que rachava o chão da barro. Vitor só falava na Coca-Cola que
beberia no PC 15, enquanto eu pensava nos PCs sendo recolhidos e nossa prova
indo pelo ralo.
Fomos para o PC 14 pela trilha de baixo, a trilha dos
espinhos. Com poucos metros, estava com outro pneu furado. Como não achamos o
PC 14 por baixo, sugeri que tentássemos pela trilha de cima para não perdermos
mais tempo. Meu marido querido, disperso da prova desde o primeiro
vômito, preferiu ir tomar a Coca-Cola no PC 15 e depois voltar pro 14. Oh céus!
Como ninguém tem culpa sozinho, divido tudo isso com ele desde o começo, nem preciso explicar o porquê.
Lá fomos nós para o PC 15 tomar o diacho da Coca-Cola. Nem cri quando
Daniel pediu que não voltássemos para o 14 porque tiraria a menina que estava
no PC naquele momento. Fomos mandados direto pra o 17, no remo. Nisso, já era
mais de meio dia. Depois de mais um tempo de descanso e de pegar toda comida
possível, seguimos para os 13 km finais de bicicleta pelo asfalto.
Pedalamos o mais rápido
possível, mas a coisa estava tão feia que Vitor não conseguia acompanhar meu
vácuo. Mesmo assim, não estava preocupada porque só faltariam 25 km de remo até
a chegada. No nosso ritmo. Na minha cabeça, era isso que passava. Faltava pouco
pra acabar e não pegamos o corte, mesmo com tantos problemas.
Chegando ao PC 17, já fui organizando as coisas e negociando
o barco quando marido pediu PPU. Ele já estava no chão outra vez e acho mesmo
que foi até onde aguentou. Desde a subida da serra que a coisa estava
complicada, vomitou outra vez, já não conseguia comer nada. Paciência...
Paramos no PC 17 sem estresse, eu com minhas ressacas morais, ele com as dele.
Aproveitamos a carona de Cléo e Manoela, sempre tão gentis e queridas, e nos mandamos pra Juazeiro.
Sabem de uma coisa? Ainda assim, mesmo com o tanto de coisas que deu errado, curti
cada minuto da prova. O céu estreladíssimo de cima da serra, a vista pra cidade
naquele breu, o abismo, os pneus furados, o perrengue, a sede, a corrida pra não
pegar o corte, o encontro com os amigos. Sei bem do desconforto de desistir de uma prova e divido a culpa com meu marido sem nenhum problema. Nesse um ano de casados
passamos por tantas provas da vida, que poder participar da corrida foi o marco
para nossos dias de glória. Muitas vitórias virão, na vida e nas corridas,
tenho certeza! Agora uma música pra comemorar nosso casamento, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nos Desafios dos Sertões e da Vida...
Até a próxima!
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