Eu nem sei por onde começar… É tanta história... vivemos alguns anos em cinco dias, compactamos todas as emoções em cinco dias. 😅 Estamos treinando faz mais de um ano pra fazer uma prova de 500km. Elegemos nossa querida treinadora, a Tia Fê (Fernanda Piedade), que sempre foi nossa malvada favorita e passou a ser da equipe inteira. Ganhou o respeito de todos! Nessa empreitada, nós (eu e Vitor), Maurício e João. De todos, só eu fiz provas de 500km. Maurício e Vitor correram mais de 100km muitas vezes e João nunca tinha corrido uma de 100km, mas é bem rodado em outros esportes. Era pra ser Terra de Gigantes mas a Pandemia jogou areia em nosso brinquedo. Optamos pela Malacara porque ninguém aguentava mais treinar, ninguém aguentava mais esperar, e repetíamos aos quatro cantos que se não fosse agora, não seria mais hora nenhuma.
Bom… vamos em frente pra vocês verem o que aconteceu. Toda nossa prova foi muito bem planejada desde antes de decidimos ir. Não perdemos uma informação, treinamos juntos muitas vezes, nos conhecemos o tanto que pudemos. Tínhamos tudo! Equipamentos, treinamento, planejamento, motivação. Compramos passagens e pensamos que tínhamos roupas pra enfrentar um dilúvio – guarde essa informação, porque ela será importante adiante. Antes de viajarmos, abrimos um grupo de whatsapp para que nossa assessora de assuntos aleatórios, promoter e dona da porra toda, Janaína Coelho, pudesse moderar e colocar informações sobre nossa odisseia pros amigos e familiares. E seguimos pra essa grande aventura juntos!
Cronograma:
Sábado e domingo antes da prova- chegada das equipes, conferência de equipamentos, briefing e abertura da prova.
De segunda a sábado- A PROVA
Sábado depois da prova- churrasco, premiação e encerramento.;
Domingo- volta pra casa.
Da Bahia pra Porto Alegre, mesmo de avião, leva uma vida inteira de viagem. Saímos de Salvador às 3:45h da manhã do sábado e chegamos perto do almoço em POA. Uma noite sem dormir. Chegamos em POA pouco antes do meio dia e o buzu só foi chegar às 18:30. Deu o dia todo de viagem e mais um pouquinho. Depois de muita espera, quando olhamos o tamanho do microbuzu e a quantidade de gente e bicicleta que tinha, a conta não fechava. Com muita conversa e boa vontade empilhamos (leia-se: os rapazes 😁) as caixas de bike igual aquele jogo de Tetris no fundo do buzu, nos esprememos entre as bicicletas e partimos para 3 horas de viagem até Praia Grande. Praia Grande é a cidade mais mentirosa do Brasil. Primeiro, porque não tem praia, segundo porque não é grande. Vale ressaltar!
Enfim, mortos de cansaço, Benito nos aguardava cheio de boa vontade, debaixo de um toró retado, com um carro com reboque que cabia trocentas bikes. E quem disse que achávamos a casa que alugamos? Na chuva, no frio… era a corrida começando. Deu meia noite e a Aventureiros do Agreste estava toda acordada ainda. Achando a casa, assentados e acomodados, dormimos. De manhã, toda tranquilidade de uma cidade pequena, montanha pra todo lado e a calmaria de domingo no interior. Passamos parte da manhã no mercado, comprando as comidas que ainda faltavam pra corrida, e a outra parte arrumando os equipamentos.
Recebemos a visita ilustre do nosso amigo Arnaldinho no começo da tarde e depois fomos ao ginásio base do evento para buscar os kits, apresentar os obrigatórios e tirar a boa e velha foto da equipe, no pórtico. Togs, o fotógrafo mais fofo do universo, do sistema solar e das galáxias, tirou nossa foto, e aproveitamos pra lhe desejar o Feliz Aniversário do dia anterior. É arrumação pra não acabar mais mas fomos até bem organizados! Deu tempo de voltar na casa, comer e descansar até a manhã seguinte, quando finalmente largaríamos. E quem disse que dormimos logo!? Pra que a equipe recebe 12 mapas da corrida na noite anterior? Foi um tal de marcar distâncias que não acabava mais. Mas ali eu já tava entregue à Malacara, sem possibilidade de volta… Fomos dormir pouco mais de meia noite de novo. Devo ter dormido por quatro horas.
O grande dia chegou com um tempo até bom. Acordamos cedo e partimos para o Ginásio já pedalando. Chegando lá, o clima era aquele de início de prova. O povo parecia que ia ali. Todo mundo bonito, limpo e arrumado!
Combinamos de fazer trekking quando dobrasse a esquina, entretanto, absolutamente ninguém fez isso. Foi nas carreiras mesmo! E os balões no céu tornavam a paisagem ainda mais linda!
O trekking de 57 km começava com uma travessia de rio, logo no primeiro quilômetro. Como Aventureiros precavidos que ainda enfrentariam 499km pela frente, tiramos as meias para atravessar aquele rio cheio de pedras escorregadias. A ideia era deixar o tênis escoar um pouco e calçar as meias mais adiante. A única queixa que tenho é que a correnteza levava pessoas com 50kg com a maior facilidade mas resisti bravamente. Corremos um pouco mais e quando a água escoou dos pés, calçamos as meias secas de volta.
Esses 57, fizemos junto com Arnaldinho e Diana Lordelo, que estava fora da Corrida de Aventura fazia um bom tempo mas de quem nunca esquecemos dos seus inúmeros pódios conquistados. Com eles, entramos pelo famigerado bananal, navegando com precisão quase milimétrica e saímos na boa, depois de pegar 5 PCs. Pra quem navega em eucaliptal e em canavial, bananal foi é até bem light. Soubemos que tem bastante cobra em bananal mas não encontramos nenhuma.
Continuando a nossa saga, Maurício sacou o seu super reboque de cintura e prendeu na minha mochila. Com isso, passei a andar mais depressa e consegui navegar sem reduzir a velocidade. Tivemos receio dele quebrar mais pra frente mas essa sensação não durou muito tempo.
Nos aventuramos por infinitas subidas e descidas, por muitos PCs. No PC 13, vimos a possibilidade de subir até o 14 pelo leito do rio. Era um entroncamento de rios... Teríamos que atravessar um e subir o leito do outro. Na ilusão de que só molharíamos os pés nos rios, mais uma vez, sentamos, tiramos nossas meias, atravessamos na correnteza segurando as mãos, fazendo uma cordinha de caranguejo, e calçamos as meias de volta mais pra frente. No azimute, vimos a possibilidade de seguir pela beira, sem molhar os pés novamente. E fomos! Mas, nesse molha não molha, o PC estava embaixo da ponte, sem nos dar chance alguma de ficar de pés secos. Aff Maria, minha gente! No PC14, uma dupla já passava de bicicleta pela estrada. Que povo rápido! Mas por mim estava tudo bem que eles fossem rápidos! Todas as contas que Maurício fez sobre nossa média de tempo estavam batendo. Pegamos os últimos PCs e seguimos pra pegar as bicicletas com pouco menos de 16h de prova.
A gente se saiu bem na transição, apesar das queixas de Mau, nosso atleta pilhadão. Ele queria uma transição de alguns minutos, demoramos quase uma hora. Dezesseis horas de trekking não é pouco. Tivemos que nos recompor pra seguir e consideramos aquilo necessário pra enfrentar o trecho seguinte- 126km de bike. Saímos junto com muitas outras equipes. Além de todos os equipamentos obrigatórios, cada um teve que levar 1kg de alimento pra entregar na comunidade quilombola no PC 17. Acredito que tenha ficado evidente que senti a velocidade dos meninos na bike. Durante esse tempo todo da pandemia, não peguei um resfriado pra uma semana antes da prova ficar totalmente arriada. O medo maior foi estar de COVID e não poder correr a prova. Fiz o teste me pelando de medo e quase enfartei pra olhar o resultado. E quase soltei fogos de felicidade com o resultado negativo mas só fui melhorar uns dois dias antes de viajar. Ainda tive a sorte de menstruar dois dias antes da corrida mas pra isso eu estava preparada. No PC17, já chovia um pouquinho. Reduzimos o peso da mochila na entrega do quilo de alimento e começamos a saga da subida da serra, que Vítor vai contar como foi…
Vitor escrevendo… Depois de enfrentarmos 4 km de pedra no leito do rio, onde não se podia pedalar, começamos a subir o famigerado “push-bike” anunciado por Benito. 33 curvas de nível, 900 m de altimetria em pouco mais de 2 km no mapa. Com o relevo, a rampa na hipotenusa dava quase 5 km de subida de pedra que já seria difícil de trekking, imagina empurrando bike, imagina afundando o pé na lama e imagina a trilha virando cachoeira sob nossos pés. Foi mais ou menos o que aconteceu, com a chuva, com raios e trovões. Encontramos umas sete solas de sapatilha largadas pelo caminho e cruzei com um cara com a sapatilha sem sola, literalmente, pisando no chão, com uma volta de Silver Tape segurando o que restou da sapatilha no pé. Tinha gente ainda pior do que eu! Além de carregar minha bike, ajudei Luciana com a dela por uns dois ou três trechos e foi o máximo que consegui. Mau e João deram conta dos demais auxílios. Eles levavam as bikes deles uns metros acima, voltavam para buscar a bike da Lu e levavam a dela uns metros mais acima, voltando pra buscar as deles e assim por diante. O resto ela se virou sozinha.
Gente, sabe aqueles trechos que parecem que não vão acabar nunca? Nunca vai acabar? Nunca vai acabar! Desistir… nunca, vai acabar. Pois é. Por mais que eu tente, nunca vou conseguir transmitir o que foi aquilo. Nunca havia passado por nada igualmente exaustivo e desesperador. Chegamos ao topo da montanha exaustos. Quando enfim chegamos a um trecho pedalável, reunimos forças para montar e seguir. A esta altura, a chuva já caia forte e começava a virar tempestade. Já estávamos precisando comer e por sugestão de João, parecendo até intuitivo: “vamos achar uma cobertura pra pelo menos comer no seco”. Ao achar o PC 18, resolvemos entrar em um celeiro ali perto para comer, pelo menos. Foi nossa surpresa ao descobrir que o celeiro era a casa da Dona Fátima e seu marido, um casal de tiozinhos que estava acolhendo os maltrapilhos fugitivos da tempestade. Foi o tempo de pedirmos uma água quente para fazer uma sopinha de envelope e a chuva, que já era tempestade, piorou e o céu desabou. O vento parecia que ia derrubar tudo e o barulho da água no telhado do celeiro era ensurdecedor. Achamos por bem aguardar um pouco pois, além das condições desfavoráveis, nossas roupas “impermeáveis” estavam completamente encharcadas e o frio era estarrecedor lá fora.
Enquanto esperávamos, ficamos sabendo que uma menina sofria de hipotermia e já tinham até chamado o resgate. Teve gente perguntando se tinha algum médico no local e tudo. Foi o maior susto. Outras equipes desistiram nesse ponto e tivemos notícias de outros casos de hipotermia e desistências de equipes que insistiram em seguir sob a tempestade. Descobrimos depois que a tempestade era, na verdade, um ciclone extratropical que tinha atingido o litoral do Sul do país e nos pegou em cheio na subida da montanha. No início da noite, Benito apareceu no local de carro e nos avisou que a primeira canoagem e o rapel tinham sido cortados por conta do mal tempo e as trilhas estavam completamente alagadas e vários rios transbordaram no caminho. Achamos por bem ficar mais um pouco no local, comer o feijão da Dona Fátima e partir na madrugada, quando supostamente a tempestade já tivesse passado.
Agora é Lulu quem vos escreve… Sonhamos que só molharíamos os pés naquela passagem de rio lá embaixo, hein?! A ambulância nos visitou algumas vezes lá na serra. O resgate, virava e mexia, passava pra recolher algumas equipes. Eles nos olhavam e perguntavam se continuaríamos. Pra nós, era só uma questão da chuva melhorar um pouco. Não havia nenhuma possibilidade de sair naquele temporal. Chegamos lá às 10:30 da manhã, queríamos sair logo e acabamos tendo que esperar, sendo obrigados a dormir. Só quem estava disposto a enfrentar tudo que viesse pela frente era Maurício. Em alguns momentos a gente ria e perguntava o que ele tinha bebido pra gente beber também… Ensaiamos sair em vários momentos. Quando vimos que já era noite e a chuva seguia firme e muito forte, decidimos dormir. Dona Fátima, fofa demais, arrumou dois colchões e cobertores. Dormimos como anjos que acordam às 3 da manhã e se vão sem deixar vestígios. Já sabendo que não pegaríamos o trecho de canoagem, a corrida estava resignificada pra nós, assim como deve ter sido pra várias equipes que decidiram continuar. Era uma questão de sobrevivência. Uma questão de chegar até o fim, de brincar o brinquedo até onde fosse possível.
Nós quatro sabíamos exatamente o que tínhamos ido fazer ali e nem um ciclone extratropical nos impediria de chegar até o fim, nem que fosse tomando cortes. Mesmo com toda chuva que caiu, voltamos a pedalar sem sentir frio. As trilhas e estradas estavam completamente alagadas. Era mais jogo pedalar do que empurrar bicicleta naqueles 100 km que faltavam pra fechar aquela perna. Contrariando a previsão do tempo, a chuva continuou mas a gente resolveu não se queixar de nada. Tava ótimo! O pedal todo foi em cima da serra até o PC 22, com ladeiras leves, até chegar a hora de descer. Muita curva nessa hora, freio pra que te quero, muitas cachoeiras nos paredões que transbordavam água pra tudo que era lado. Um visual inesquecível!
Àquela altura já dava pra perceber que tava todo mundo curtindo o perrengue, com corte ou sem corte. Gente que dizia que seria a primeira e última de 500km fazia planos com todas as alterações de conduta para a próxima edição. A empolgação era geral!! Nesse sobe e desce de ladeira, nessa chuvinha, nesse friozinho de arrepiar, um peido virou cagada, a cueca teve de ser jogada fora e a gente quase rolou de gargalhar. Só não dá pra dizer quem foi porque o que acontece na Malacara fica na Malacara. Quase explodimos o sul do país de tanto peidar! O pneu de Vitor começou a esvaziar antes mesmo de descermos a serra. E insistiu! Depois de inúmeros zigue zagues da descida, passamos num vilarejo onde tinha uma lanchonete. Ali já era pouco mais de meio-dia e decidimos conciliar a troca de câmara com um lanchinho. O pão com ovo e queijo foi o suprassumo da felicidade humana. Todos os Deuses convergiram para que aquela senhora que parecia nossa Babi, fizesse o melhor sanduíche do universo! Chegamos à conclusão de que todo mundo que mora em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul tem a cara de Vande e Babi.
Que dia era mesmo? Ah! Era quarta-feira! O navegador desse trecho era Vitor. Combinamos dele nos guiar nos trechos de bike e eu guiar nos de trekking, sempre com a ajuda dos demais. Enfim, chegamos na transição de número 2, onde faríamos a mudança pra modalidade de canoagem mas que, com o corte, seguiríamos pra bike mais uma vez por quarenta e poucos quilômetros. Ou seja, naquele dia pedalamos 140 e poucos. Como nessa transição tinha chuveiro quente, decidimos, antes de continuar o pedal, tomar nosso primeiro e único banho desses cinco dias de aventura. Exceto o serumaninho chamado Maurício, que nem quis saber de banho. Ele só queria ir embora, pegar tudo, fazer tudo, fugir dos cortes. Me empurrou por muitos trechos de bike e me puxou por longos trechos de trekking. Incansavelmente, nos motivava o tempo todo! Recompostos, seguimos pra concluir nosso pedalzinho. O pedal mais leve da corrida inteira, apesar dos 100km antes do banho. Aliás, foi a única coisa leve que fizemos por lá, embora eu não lembre de nenhum sofrimento que vivi.
Curti cada bolha do meu pé, cada dor que senti, cada momento intensamente. Tem uma música do O Teatro Mágico que não saía da minha cabeça na corrida inteira e eu cantava internamente durante todo o percurso. Algumas vezes cantava alto. “Eu não sei na verdade quem eu sou Já tentei calcular o meu valor Mas sempre encontro um sorriso e o meu paraíso é onde estou Eu não sei… na verdade quem eu sou.” Para uma mulher que está fechando 50 anos, viveu algumas histórias e fez um monte de coisas de auto conhecimento, parece estranho. Pra mim, a resposta de todo auto conhecimento é que ninguém sabe o que está fazendo aqui. A vida lhe arranca da sua zona de conforto quando você menos espera. Ninguém tem o controle, ninguém é pleno! A vida é hoje, é agora, é nesse minuto. Passei anos terapeutizando, buscando o propósito pra descobrir que não quero ter propósito. Só quero seguir o meu caminho e cuidar da minha vida. O propósito limita as minhas opções. Prefiro pequenos objetivos. E pra Malaraca, meu objetivo pessoal era fazer a prova inteira. O coletivo era chegar até o fim. Seguimos ressignificando, sendo resilientes e isso que me encanta na vida.
Eita que filosofei horrores agora! Depois do banho o pedal fluiu bem direitinho, apesar da distância. Mau me ajudou muito a manter um desempenho legal. Nesse trecho de bike, alguns PCs também foram cancelados. Pegamos os PCs 27 e 28 e seguimos por um trechão enorme de asfalto. Pedalamos muito, muito mesmo, até que chegamos na transição para o segundo trekking da prova. Aí Vitor vai contar pra vocês na próxima postagem, porque preciso descansar os dedos...
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