Onde estávamos mesmo??
Ah! Acordamos e partimos pros 155km de bike, como se fosse um dia comum, um dia de trabalho. Ninguém reclama, ninguém aperta o soneca, ninguém pede mais um minutinho. Seguimos pedalando, esquentando a musculatura, aquecendo o coração. Nosso destino: Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, ou parte dele.
Foto: @luiz_fabiano_ibex |
Já estávamos na estrada quando amanheceu... Minha bicicleta e eu não nos entendemos logo de cara
porque a marcha começou a pular mas, rapidinho, Vitor fez uns ajustes que me
ajudaram a subir melhor as ladeiras. O detalhe é que aquelas ladeiras não
chegavam nem perto das que viriam a seguir. Não sei se sofri mais nessa
Malacara ou na passada. A gente esquece que sofreu. Isso é até bom. Deixar a
felicidade da superação fazer parte das nossas lembranças mais vivas. É o véu da insanidade.
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Escrevendo,
sinto até uma certa emoção. Voltando aos momentos antes da largada, quando
acordei e comecei a me aprontar, ouvi uma voz dentro de mim,
dizendo:
-Você não
pedala nada! O que você quer fazendo uma corrida dessas?
A voz dizia
“você”, como se fosse realmente alguém falando comigo. Bom... não pude deixar
de refletir sobre isso durante meus perrengues. Tinha horas em que me sentia
super bem, outras horas que me sentia uma ciclista bem descarada. Na verdade,
eu sei bem das minhas limitações, sempre tive muito medo de pedalar, de cair.
Não é segredo que aprendi a andar de bicicleta aos 11 anos, nunca tive
bicicleta quando nova, comecei a pedalar aos 34 na própria Corrida de Aventura. Não
sabia passar marcha, não sabia descer ladeira, até hoje travo em algumas
situações. Mas vou assim mesmo, enfrento, evoluo um tantinho a cada situação. Já melhorei muito! Inclusive, aprender a navegar foi uma conquista que me trouxe
um pouco mais de habilidades dentro do esporte, de forma que ampliasse o tanto
de coisas que sabia fazer numa corrida de aventura, que não fosse só ser a
mulher da equipe, uma atleta de percurso.
Àquela altura, tínhamos muitas horas naquele perrengue! Enquanto eu, Vitor e Maurício nos debatíamos entre as valas até o topo que nunca chegava, João subia com mais tranquilidade e nos esperava logo adiante. Parecia que não ia acabar nunca, mas acabou. Na vida é bem assim também. Uma hora a dificuldade chega ao fim. Dure o quanto durar, acaba! E Maurício me ajudou demais! Ele é forte de impressionar! Carregava minha bicicleta, levava até bem longe, voltava, pegava a dele, levava até mais longe ainda. Só faltou me carregar. E enquanto ele passava por mim, eu refletia sobre toda aquela força e me preocupava com o preço que poderia pagar lá na frente. Não sei se foi um pressentimento.
A estrada
chegou! Mesmo com muitas ladeiras pra gente subir, a situação melhorou.
Encontramos uma casa, uma senhora, uma mangueira. Lavamos nossas bicicletas,
enchemos nossos reservatórios de água. Perguntei se tinha alguma lanchonete por
ali pra comermos um pão com ovo e tomarmos um café. Ela respondeu com uma mesa
posta, pão caseiro, cuca, ovos, café com leite. E tomamos um café da manhã na
casa de Dona Renita, lavamos nossos pés, nos recompomos, revigoramos as forças
pra continuar. Dona Renita foi um anjo que apareceu em nossas vidas. Onde quer
que estejamos, vamos lembrar dela com carinho.
Passamos o
dia inteiro pedalando, encontrando trocentos PCs. Sabíamos que nosso GPS tracker
não estava funcionando mas só resolveríamos isso na transição seguinte. Chegou
a noite, e nunca acabava esse pedal. Chegamos a parar num ponto de ônibus pra
Maurício se recompor de uma baixa. Lembrei logo de todo esforço que fez pra me
ajudar. Descansamos alguns minutos, depois seguimos. O desconforto não parou.
Sugeri chegarmos até a igreja do PC seguinte. Conseguimos chegar,
subimos, apagamos as luzes e adiantamos nosso soninho de 2 horas por noite,
monitorado por João.
Detalhe que
Mau deitou em cima da mochila, como de costume, mas a bolsa de água vazou. Ele
acordou na poça d’água, tremendo muito, com início de hipotermia. Vitor já
tomou logo a iniciativa de tirar a roupa dele e embalar seu corpo na manta
térmica. Bendita manta térmica! Devemos ter ficado mais uns 20 minutinhos na
porta da igreja pra Mamau se recuperar. Ainda bem que tudo se resolveu!
Ok! Seguimos
pela estrada afora, vendo umas perninhas em varandas escuras, pontos de ônibus,
portas de igrejas, onde uma equipe ou outra parava pra dormir. Alguns devem nos
ter visto também.
Passamos mais
um dia pedalando, as ladeiras eram extremamente íngremes em muitos momentos.
Muitas vezes, não conseguíamos subir pedalando. Eu e Judite, minha bicicleta,
já nos entendíamos melhor, entretanto, serviam as marchas mais leves e as
marchas mais pesadas. Nada intermediário funcionava. Então, algumas vezes, me
atrapalhava toda, mudava a marcha errada. Quando era uma ladeira, jogava pra
marchas pesadas, dava uma merda danada. Mas nada que não tenha passado na minha
vida.
No caminho
pro PC 43, bem pertinho, encontramos as equipes Ubuntu e Makaíra, das muitas
vezes que nos batemos na prova. Um deles até comentou que algumas equipes
tiveram dificuldade de achar o caminho para a Transição. Seguimos pro PC,
passando por uma casa, onde tinha uma mangueira com água, bem perto do eucaliptal.
Aproveitamos pra nos abastecer o suficiente pra chegarmos até a transição. A
moça, que estava lá com seu cachorro, disse que a água era boa.
Enfim, por
volta das 17:20, chegamos ao último PC, o 43. Dali, só teríamos que chegar até
a transição. Com o horário de corte de aproximando, 23:59 daquele dia, nosso
tempo já não estava tão folgado. Sendo que o horário era de saída pro trekking,
ou seja, teríamos que fazer uma transição rápida e sair pro trekking antes da
meia noite, tipo, Cinderela. Caso contrário, entraríamos no corte e o resultado
disso seria não fazer o trekking, pulando para a fase seguinte, que era outro
longo trecho de pedal. Espero que tenha dado pra entender.
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Aconteceu que tínhamos duas alternativas de caminho. Uma que seguia do 43, descia uma ladeira até o infinito e depois subia tudo outra vez, até a transição. A outra seria voltar um tanto, subir um montão, depois descer até a transição, por um caminho um pouco mais curto. No mapa, ambos os caminhos estavam indicados como estrada. Vitor, que estava navegando sozinho, e muito bem, me chamou pra escolher junto com ele e eu recusei. Empaquei! Pedi pra João fazer a escolha com ele e, com o consentimento de todos, decidimos por fazer o caminho mais curto.
Dos 155km,
faltavam cerca de 20, no máximo. Ora a trilha estava no azimute, ora não estava.
Encontramos cerca, trilha, pista de pouso, caminhos indistintos, trilhas que
não estavam no mapa. As outras equipes também estavam tentando. Anoiteceu. E
depois de cerca de 2 horas, num momento em que nada batia com nada, paramos pra
refletir que poderíamos estar muito errados, já que todo percurso estava com os
traçados muito fidedignos e esse não estava. Concluímos que poderíamos ficar
muitas horas ali, enquanto o melhor, talvez, fosse voltar pelo 43 e seguir pelo
caminho um pouco maior. Talvez 4 ou 5km a mais. Nessa conversa, percebemos que
o tempo se esgotava. Voltamos com um pouco de dificuldade, encontramos a casa
onde tínhamos abastecido, passamos pelo 43.
Àquela
altura, a água que pegamos na casa, abaixo do eucaliptal, tinha feito efeito
ruim em todos. Lembrem que nunca se deve pegar água abaixo de bananal e
eucaliptal, mas a moça da casa disse que era boa, que eles bebiam dela... enfim.
O sabor era estranho, ficamos enjoados. Vitor ficou bem pior. Eu, que não
estava navegando nada na bike, só ajudando nas distâncias e marcando percurso,
peguei o meu mapa, botei no chão e cortei só aquele pedaço com a tesoura, pra
começar a ajudar.
Pressenti que
não dava mais pra fazer a prova sem o corte, como tanto desejamos. Vitor não
queria mais tocar na água. Corríamos contra o tempo! Pedalei um pouco na
frente, tentei adiantar a navegação, ir reconhecendo as áreas, checando as
referências. Encontramos uma nascente pra reabastecer. Descemos até o final da
estrada, beiramos um rio alguns quilômetros, passamos por uma ponte grande e
chegamos até a subida do acampamento onde ficava a Transição. Tinha um barzinho
bem pertinho da subida, onde João comprou Coca-cola pra todo mundo. Começamos a
pedalar por uma parte plana, por quase 4km.
Era um caminho cheio de despenhadeiros, daqueles que, se a gente caísse, não tinha
como sobreviver. Percebemos o quanto Vitor não estava bem quando levou uma
queda muito boba numa poça d’água. Daquelas quedas que a pessoa só leva se
estiver no auge da fraqueza ou dormindo. Daí, começou a chover com raios, o
começo da ladeira chegou, pensamos nos penhascos e decidimos voltar ao bar,
dormir e fazer a subida depois de descansar. Enfim, escolhemos juntos, não tentar
chegar antes do corte. Às 23:08h, provavelmente, seria humanamente impossível,
chegarmos no tempo. Além disso, teríamos que sair da transição antes de 23:59.
Voltamos debaixo de chuva, raios e trovões, até o bar, desejando comer algo. O bar estava fechado. Por sorte, o banheiro estava aberto! Deu pra usar água, ir no banheiro. A dormida sai não foi melhor pra mim, porque uma rã insistiu em dormir no meu rosto. Eu estava tão sonolenta, sentia a frieza das patinhas dela, tirava do meu rosto, ela voltava. Tive que me cobrir toda com a manta térmica mas, ainda assim, acordei com a dita-cuja agarrada na minha testa. 🤭🤭
Dormimos por duas horas, a chuva passou, nos arrumamos e seguimos,
um pouco decepcionados, mas ressignificando. Sempre há chance de ressignificar.
Eu, arrasada, pensando que, se tivesse com meu mapa na mão o tempo inteiro,
talvez, quem sabe, o final dessa história não fosse diferente. Mas quem iria
saber se não aceitaríamos a sugestão de ir pelo outro caminho, de qualquer
maneira. Enfim... O “se” jamais será a resposta! Afinal, Vitor navegou tão bem!
Recompostos, dentro das nossas possibilidades, com calos machucando, unhas pulando, perebas dos muitos tombos, começamos a subida para a Transição. Subimos muito, muito, muito. Demoramos ao menos duas horas pra chegar até o acampamento, já de dia. Na chegada, passamos por onde acontecia o rapel, continuamos mais um pouco, até a entrada do Acampamento Soldados Sebold, onde encontramos a Makaíra saindo pra bike. Eles conseguiram chegar antes do corte mas optaram por descansar, pegar o corte e seguir na bike. Assim como eles, a outra equipe que estava com a gente perto do PC43 fez a mesma escolha e permanecia ainda na transição.
Foto: @luiz_fabiano_ibex |
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Ao chegarmos,
todos queriam saber da nossa vida, por onde andamos. Dadas as explicações,
seguimos para a área onde estavam nossos sacos de mantimentos. Enquanto
encontrávamos nossas coisas, João nos chamou pra conversar e disse que a prova
para ele terminava ali, que não estava com a cabeça boa. Ficamos todos
atônitos, totalmente surpresos, sem argumentos. Mergulhados em nossas próprias
dificuldades, em nossas próprias lutas, não percebemos a luta do nosso amigo
entre as suas questões pessoais, que se refletiam em momentos em que ele se
mostrava distante e alheio, e as questões relacionadas à equipe, onde ele era o
capitão e seguia nos conduzindo de forma acertada.
Tentamos entender, pouco lutamos para que não desistíssemos. Ele sugeriu que seguíssemos apenas nós 3. Não vimos sentido. Não sei se se eu tivesse uma morte na família, estaria lá, correndo. Não tinha como estar no lugar dele, mas empatia era lei naquele momento. Ele poderia ter ido embora antes mesmo de largar. Fisicamente, apesar dos meus pés destruídos, ninguém estava impossibilitado.
Decidimos comer, antes de dar a notícia para a organização, meio que à espera de um milagre, sem ainda acreditar, mas acreditando que, como uma atitude de respeito ao nosso parceiro, pararíamos.
A partir
daquele momento, ficamos à mercê de quando o resgate nos levaria até o hotel.
Como a primeira turma sairia no fim da tarde, comemos um macarrãozinho, feito
com muito amor por Vitor, com boa parte das nossas comidinhas, castanhas,
salames, etc. Juliana, que estava no staff, nos convidou a fazer o rapel.
Maurício e Vitor aceitaram. Então deu pra curtir um pouquinho mais da prova.
Tomamos cerveja, comemos pizza, gastamos quase todo nosso dinheiro no
acampamento. Maurício e João foram embora logo depois do jantar.
Nós só
conseguimos resgate no outro dia, mas o Staff foi super acolhedor. Durante o
tempo em que permanecemos por lá, vimos muitas equipes chegando e saindo, muita
gente lutando pra arrumar bicicleta pra conseguir partir. Acabei doando minhas
pastilhas de freio pra um rapaz sorridente, que acabou passando a noite lá,
tentando dar um jeito na bicicleta dele. Nenhum atleta parecia cansado, todos
pareciam guerreiros de uma batalha que só terminaria entre sexta e sábado.
Nesse vai e
vem, Felipe marcou fortemente aquele momento pra mim, ao explicar o significado
do nome da sua equipe, a Ubuntu Xondaro. “Eu sou, porque nós somos”. Ubuntu
seria “humanidade para com os outros”. Aí eu fui no Google e li que “Uma pessoa
com Ubuntu tem consciência de que é afetada quando seus semelhantes são diminuídos,
oprimidos. As pessoas devem saber que o mundo não é uma ilha. Ubuntu possui um
potencial ético capaz de fortalecer um convívio social no qual valores como a
solidariedade, a confiança, o respeito, a generosidade são assumidos como
fundamentais.
Xondaro, ele
descreveu como um índio guerreiro. No Google... vi que “é uma técnica de
luta utilizada pelos indígenas guaranis para defesa de seu território e que
também é uma dança, que se configura um ritual em defesa do sagrado.”
Paramos na
AT4, sem pedir muita explicação, todos, juntos, numa atitude de respeito à
nossa unidade.
Corrida de
Aventura é um jogo calculado, estratégico, perigoso, surpreendente, que envolve
sentimento, probabilidade, adaptações, surpresas, interações. É uma dança sintonizada,
emparelhada. Uma caminhada constante, lado a lado, ritmada. Quando alguém sai
da sintonia, a gente precisa ir lá buscá-lo, e ele também precisa lembrar de que
precisa voltar. A gente precisa ser auto suficiente e observar se o outro está
sendo. Assim como é a vida... as coisas vão acontecendo e a gente vai se
arrumando pra se adaptar ao contexto e, quem sabe, mudar algumas coisas, mas
sempre em sintonia com o todo.
Sei bem o que
é parar numa prova. Nesses 18 anos de Corrida de Aventura, já desisti, já
resisti, já persisti. Já tive situações em que, até hoje. não sei das marcas que
deixei nas pessoas que arrastei comigo a continuar numa prova em que,
significava muito, chegar ao fim, pra provar alguma coisa pra mim mesma, testar meus limites, sei lá! Na verdade, eu não sei finalizar um processo
onde o fim não é exatamente onde planejei. Isso é uma grande lição pra mim,
que, aos 51, sigo aprendendo a respeitar o processo do outro, esbarrando em minhas
próprias sombras, na minha vaidade, no meu orgulho, em minhas derrotas e em todos os
sentimentos que vascularizam esse processo. Tantas equipes desistem, tantas
equipes seguem incompletas, tantas intercorrências acontecem, tanta gente
promete nunca mais voltar lá, tanta gente dizia que seria a última de 500km, tanta gente estará lá sempre, independente do que aconteça, pra tanta gente parar é uma coisa banal.
Escreveria mais dez folhas sobre isso, sem esgotar o tema. Ressaca, tivemos,
temos e teremos!
Por fim,
parabéns Leo, Benito, Catarina e toda equipe que nos acolheu de forma única!
Que prova incrível! Que alegria participar dessa festa! Que alegria estar num
mundial, com a presença da Heidi Muller, de Arnaldo e com Togumi e Luiz Fabiano
pra registrar cada etapa momentos.
Que alegria e
honra correr com João, Maurício e Vitor! Só agradeço por estar com essas
pessoas maravilhosas, cada uma com qualidades que se complementam e tornam o
todo que somos: Aventureiros do Agreste.
Valeu, amigos! Valeu, famílias! Valeu, torcida! Valeu, tia Fê! Valeu pela vibração!
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